O tratamento ou não de cães para a Leishmaniose visceral chegou ao Supremo Tribunal Federal - STF, que em decisão liminar acaba de decidir por suspensão da eficácia da Portaria Interministerial nº 1426 de 11 de julho de 2008 - Ministério da Saúde e MAPA. Tal decisão reabre a discussão sobre a permissibilidade ou não dos proprietários de cães optarem pelo tratamento da Leishmaniose visceral, vulgarmente chamada de calazar, em vez de serem obrigados a aceitarem a eutanásia, que é a recomendação das autoridades públicas de saúde e do Conselho Federal de Medicina Veterinária.
O problema é bastante complexo e sério a ponto de ter chegado a maior corte da justiça nacional para que tenha uma decisão (ainda não definitiva).
Várias são as questões envolvidas. Mas faz-se necessário mencionar o que é mais grave: trata-se de uma questão de saúde, animal e pública, por se tratar de uma doença zoonótica (acomete animais e o ser humano) e, portanto, o que se espera é que quem venha a dar a decisão final em defesa deste bem maior chamado saúde sejam os profissionais com capacidade técnica para tal: os médicos veterinários, sem menosprezar equipe multidisciplinar de infectologistas, farmacologistas, epidemiologistas e demais especialistas de outras graduações que não só podem como devem emitir suas opiniões não só para amparar as decisões judiciais mais também esclarecer a opinião pública.
E porque desta argumentação? Pelo simples fato de que uma doença que tem matado tantas pessoas anos após anos no Brasil e que tem como seu maior reservatório urbano os cães domésticos ainda não disponha de consenso científico quanto a tratamento dos cães e salvaguarda da saúde humana.
Iniciando por um ponto complexo: tratamento. Existem drogas que garantem o tratamento nos seres humanos, mas estas não são aprovadas para uso animal (no Brasil) e não existe comprovação científica de cura. Ou seja, eventualmente o animal pode se tornar portador inaparente (tem a doença mas não os sintomas) e continuar como reservatório, permitindo a disseminação da doença não só para outros cães como para as pessoas.
Ainda sobre o tratamento faz-se necessário um parêntese. O mesmo além de prolongado é considerado de custos elevados. Algo em torno de R$ 400,00 por mês durante um período mínimo de seis meses.
Em um país que permite a morte de milhares de cidadãos por falta de atendimento digno de saúde, a possibilidade de se permitir, sob o ponto de vista de um possível tratamento, que animais continuem enfermos e difundindo a doença para as pessoas seria temerário. Isso sem entrar no mérito do fato dos cães submetidos a um protocolo rígido de tratamento ainda poderem vir a ter recaídas da enfermidade. O argumento se fundamenta no fato de que não sendo obrigatório o sacrifício e sendo o tratamento longo e caro, muitos destes tratamentos, quando iniciados, não chegarão ao final. O que tornará o risco epidêmico da Leishmaniose muito mais possível, não só para os cães, mas para as pessoas.
Valoração da vida e do sofrimento é algo tão complexo, principalmente quando envolve não só o ser humano, mas também outra espécies. Embora pisando em terreno pantanoso, lembremos o recente caso do Instituto Royal, onde grande parte da população apoiou a invasão e retirada dos cães beagles sob a alegação de maus tratos aos cães, mesmo que estudos se propusessem a salvar vidas humanas. Mas esta será uma questão a ser decidida pelo judiciário: qual o número de vidas humanas pode-se descartar sob o argumento de se tratar e evitar a eutanásia dos cães enfermos?
O mapa da leishmaniose mostra que o risco não está restrito a poucos estados.
Citando como exemplo, algo presenciado em clínica veterinária: o proprietário é informado do diagnóstico positivo para calazar e da necessidade de eutanásia (após reteste confirmatório). Por carinho/amor a seu animal é sempre reticente, e questiona a possibilidade de tratamento, mesmo sabendo (ou não) que o mesmo é proibido (até decisão judicial contrária). O médico veterinário por dever ético informa seu cliente que existem tratamentos, mas estes não são autorizados no Brasil. Também (ou não) que mesmo tratado o animal continuará a ser um possível portador, contribuindo para difundir a doença, que por seu vetor (mosquito palha) poderá pôr em risco a saúde (incluindo com risco de morte) seus familiares e vizinhos, principalmente crianças e idosos. Para este exemplo já se obteve todos os tipos de respostas, eis os extremos: Então doutor! Se é uma questão de saúde pública e o tratamento é proibido, mesmo que com imenso pesar aceito o sacrifício. Ou: Doutor, eu não tenho criança e nem idosos moram comigo, então vamos tratar meu cão e cada um que se vire com sua saúde.
Outros pontos: direito a saúde em bem estar dos animais, eficiência do tratamento, não transmissibilidade da doença por animais portadores, não comprovação que a política de eutanásia de cães tenha surtido efeito e, por outro lado: falta de comprovação científica do tratamento em cães, resistência do agente as drogas, risco de morte de pessoas (incluindo as que sequer tenham animais de estimação) e possibilidade de profilaxia vacinal; são argumentos que ainda não conseguiram convencer os oponentes.
Que saia uma decisão judicial definitiva do Supremo Tribunal Federal e se defina de forma jurídica o que não se chegou ao consenso científico. Pois é impossível persistir tantas liminares concedidas por diferentes tribunais, tantos agravos e embargos sem se aprofundar no mérito. No Brasil, trata-se da forma mais fácil de se resolver as coisas, pois os magistrados, diferente de veterinários, médicos e qualquer outro profissional, não podem ser punidos por suas decisões equivocadas, salvo flagrante ilegalidade, o que não seria o caso.
O mínimo que se espera é que os ministros do STF ouçam as partes em audiência pública, para que a decisão seja pelo menos amparada em argumentos científicos sólidos. A saúde pública agradece.
SAÚDE E INSPEÇÃO ANIMAL
https://saudeinspecaoanimal.comunidades.net/index.php?pagina=1421635107, em 07/11/2013