Lembro-me até hoje de um professor de tecnologia de carnes da Faculdade de Engenharia de Alimentos e Agrícola, na Unicamp, nos idos dos anos 80, dizendo: “NÃO EXISTE CARNE DE SEGUNDA. Se o boi é bom, toda carne é de primeira”. Eu era jovem, muito jovem, e aquela frase ficou martelando na minha cabeça. Ia ao açougue com minha mãe e quando a carne era para um ensopado ela pedia... carne de segunda! Entretanto, eram exatamente aqueles pratos os meus preferidos. Minha mãe usava “carne de segunda” mas meu paladar estava com meu professor de tecnologia de carnes: para mim aquilo era coisa de primeiríssima qualidade!
O tempo passou e eu andei pelo mundo, viajei e me apaixonei profundamente pela cozinha e gastronomia, provando de tudo um pouco. E foi aí que eu descobri que meu professor de tecnologia de carnes tinha realmente razão e que não existe “carne de segunda”! Minhas principais referências são a França e a Itália e suas culinárias, principalmente as “cuisine du terroir”, cozinhas regionais, a “cuisine bourgoise”, que é melhor traduzida como “cozinha familiar”, e a “cucina povera” da Itália, que eu costumo traduzir como “cozinha rica de gente pobre”.
As maiores expressões culinárias dessas culturas gastronômicas não estão no filé ou nos cortes mais caros. Estão justamente nos cortes mais baratos e nas vísceras, mas preparados com tal arte e esmero que viram obras de arte.
O editor de uma popular revista de gastronomia e viagens dos EUA certa vez disse que no verão ele não fazia comida séria, pois quase só fazia grelhados (o famoso BBQ). Mas no outono, com as temperaturas convidando a ficar em casa, aí então ele começava a cozinhar de verdade. E por “cozinhar de verdade” ele estava falando nos cozidos, estufados, ensopados: carnes mais rígidas, com bastante tecido conectivo, muitas vezes com ossos, que são cozidas lentamente até quase se desmancharem. Comidas reconfortantes, saborosas, que alimentam não só o corpo mas também a alma, que nossas avós e mães faziam mas que infelizmente estamos perdendo o hábito de consumir. As desculpas são muitas: falta de tempo (duvido), é complicado (não é), é mais calórico (também não) ou não sei o que fazer com essas carnes (com isso eu concordo plenamente!).
E aí vem o ponto que eu coloquei logo no início: sonho com o dia em que as pessoas sejam melhor informadas nos supermercados, TODOS os supermercados, em que os açougueiros possam indicar para os consumidores qual o melhor corte para cada prato, dicas de preparo, conversinhas de balcão. Que esses mesmos açougueiros mostrem as possibilidades que existem com certos cortes e com as vísceras. Que troquem receitas com os clientes! Pode parecer absurda essa colocação, mas não é. Ela é regra na Itália, na França, na Espanha e até mesmo na América do Norte, em açougues e redes de supermercado “high end”. Felizmente estamos vendo esse mesmo conceito chegando ao Brasil (infelizmente ainda devagar, muito devagar) com algumas “boutiques” de carnes aparecendo em bairros nobres das grandes cidades. A diferença é que na França, por exemplo, mesmo um pequeno açougue de uma minúscula cidade da província vai ter um açougueiro que conhece realmente sua mercadoria. E clientes que vão saber apreciá-la. São povos que conheceram as guerras e a miséria e que souberam transformar os parcos recursos em obras-primas.
Nos últimos anos, fala-se muito em sustentabilidade e em evitar desperdícios. A cadeia alimentar não está fora dessas tendências, ao contrário. E nessa linha muitos restaurantes estrelados vêm oferecendo — ou voltando a oferecer — pratos feitos com carnes antes consideradas menos nobres e, sobretudo, com vísceras. Os clientes são pessoas avisadas, que conhecem a grande cozinha e que buscam exatamente esse “savoir faire” que estamos perdendo dos pratos cozidos lentamente. Hoje no Québec, Canadá, alguns desses cortes, vísceras ou embutidos são tão valorizados que seu preço é mais elevado até que os outros ditos “nobres”. Os exemplos clássicos são o “ris de veau” (timo de vitela), o “boudin noir” (chouriço de sangue) e o “ossobuccho” (canela de bovino). O grande interesse pela cozinha italiana levou o ossobuccho a ser vendido por preços altíssimos. A lei da oferta e da procura nunca falha...
A indústria de carnes, sobretudo as pequenas empresas de transformação, tem aí um filão incrível com enormes possibilidades.
Matérias-primas de baixo custo poderiam ser transformadas em produtos de alto valor agregado.
Os brasileiros se abriram ao mundo gastronômico nos últimos anos e há uma grande sede de conhecer e provar coisas “novas”. Consequentemente temos massa crítica de consumidores.
Uma das tendências de consumo alimentar é a nostalgia com relação às comidas do passado.
Grande enfoque em evitar desperdícios.
Ou seja, tudo isso junto poderia dar muito lucro... principalmente se não nos esquecermos que TODA CARNE É NOBRE! NÃO EXISTE CARNE DE SEGUNDA!
Por Sandra Mian, para CarneTec (Blog de Sandra Mian) em:
http://www.carnetec.com.br/Industry/News/Details/52022?loginSuccess